Mais uma noite no “Café do Geléia”. O estabelecimento atraía fregueses do frio lá fora para o aconchego do local. Um calor que traria à tona memórias de uma infância perdida, de um lar abandonado ou até mesmo de uma juventude saudosa para qualquer cliente que por ali passava. Mas não era o caso para ele.
O Artista ali ficava todas as noites em seu canto particular. Não era oficialmente reservado para ele mas o local em si continha algo que ninguém, nem mesmo o próprio Geléia, poderia dizer o que era. Só sabiam que o único que se sentava por lá era o Artista Solitário, como todos o chamavam. Todas as noites ele vinha ao café, tomava seu lugar, pedia um café gelado com chantilly e ficava perdido em seu caderno desenhando ou escrevendo.
Certa noite um cliente costumeiro, o Menino Ottis, estava agitado andando pelo café e quando passou perto da mesa do Artista ouviu:
- Ei, garoto.
O Menino Ottis parou, tomou um gole de seu refrigerante e viu que o gosto não era o mesmo. Virou-se e viu que o Artista o visava com olhos pesados.
- Quer saber o porquê da grande mala que aquele senhor carrega não é mesmo? – Perguntou o Artista apontando para o homem que sempre vinha ao café com uma mala enorme, como se estivesse pronto para viajar.
Ottis sempre quis saber isso mesmo, mas nunca disse a ninguém. Olhou para o Artista com um ar confuso e ele logo continuou:
“Vou lhe contar. Vou lhe contar o que certas pessoas carregam por aí quando não agüentam injustiças da vida... Começou com um menino comum. Ele nasceu de um casal unido perante Deus e já com um filho. Dizem que nasceu com 3,4 quilogramas, 49 centímetos e perfeitamente saudável. Tinha brigas com seu irmão mais velho, mas o amava profundamente. Odiava os brigões que o atazanavam na escola. Então, quando completou 6 anos de idade, o garoto começou a andar por aí com sua mochila... Uma daquelas de rodinha que os adultos odeiam porque causam dores em seus pés, sim, uma dessas. Ele e a mochila eram inseparáveis e cada dia ela ficava mais cheia de coisas. Sua mãe não sabia o que era colocado nela, mas sabia que de alguma forma o menino ficava mais maduro a cada dia com aquela mochila.
Aos seus 8 anos de idade, o garoto se apaixonou por uma colega de sala. Brincavam juntos no intervalo e foram obrigados a sentarem separados na aula, pois se davam muito bem em qualquer situação. Durante a festa junina da escola naquele ano ele disse para a menina que queria ser seu namorado e ela recusou logo depois indo dançar com outro garoto na quadrilha. Nesse mesmo ano, sua mochila logo foi trocada por uma daquelas grandes de se colocar nas costas.
Aos 13 anos teve sua primeira visita a uma psicóloga. Após conversarem por muito tempo a mulher lhe falou sobre “Bagagem Emocional”. Foi como passou a chamar sua mochila que, ao fim do dia, estava mais pesada.
No mesmo ano, durante um jogo de futebol acompanhado do tio, o garoto recebeu a notícia de que o pai falecera. Sua mãe ficou preocupada pois, no mesmo mês, o garoto estava andando pra lá e pra cá com uma mala de viagem. O tempo foi passando e o garoto foi crescendo normalmente... Falecimentos, decepções amorosas, brigas com amigos e pessoas que vão embora. No final só lhe restava o irmão. E não durou muito.
Seu irmão tão amado um dia conheceu uma mulher e viajou para longe para morar fora. Isso foi a gota d’água para o garoto que, logo vendo a deixa do irmão, tornou sua mala tão amontoada que continha uma vida inteira de experiências que vieram e mais uns quilos de sabedoria para o que ainda virá. E ele vaga por aí... Dizendo que carrega consigo uma “Bagagem Emocional de Cem Vidas” mas nunca perdendo sua vontade de viver...”
- Acho que é isso... Acho que, quando temos esperanças, a perda da inocência é seguida, em tempo, com um aumento de humanidade...
O Menino Ottis olhava para o Artista com uma testa franzida.
- QUEM É VOCÊ, MOÇO? – Perguntou abrindo muito a boca.
O Artista olhou para o menino com olhos arregalados e insultados, se recostou em seu assento, pegou seu caderno e voltou aos seus afazeres.
- Você ainda vai ouvir falar de mim, Menino...
- Acho que é isso... Acho que, quando temos esperanças, a perda da inocência é seguida, em tempo, com um aumento de humanidade... |