O "Café do Geléia", fundado por Giovanni Di PaZZo, começou como um pequeno café na esquina da rua Orlontis com a rua Coronel Verde. Servindo apenas poucas variações do simples café o lugar foi ganhando fama devido ao seu ambiente altamente aconchegante contendo fotos de viagens feitas pelo "Geléia" (apelido carinhoso de Giovanni), relíquias e artefatos adquiridos em suas diversas aventuras pelo mundo em busca do melhor café que existia. Certo ano, Giovanni conseguiu por métodos misteriosos o melhor café que os que ali passavam já haviam provado e começou a plantá-lo e serví-lo em seu pouco famoso "Café do Geléia". O lugar ganhou fama pelo seu café fabuloso e pelo ambiente que sugeria um conto de histórias entre amigos. Agora vivemos estas histórias... Bem vindos ao "Café do Geléia".

sábado, 31 de março de 2012

Relacionamentos


            Amor. Sentimento este que permeia a essência da alma humana. Todo ser humano, incluso o Gótico, tem uma capacidade, por mais que pífia, de amar. Ver casais apaixonados é uma coisa muito comum quando se anda muito por aí. O amor está em todos os lugares, como pode ser percebido até pelo mais leigo dos seres humanos. No momento, um leigo ser humano conhecido por ser um artista, estava percebendo o sentimento no ônibus que se encontrava no momento.
            Chegou a uma conclusão. A conclusão era que aquilo o irritava. Quando se está sozinho em seu canto e tem, pelo menos, dois casais no mesmo ambiente, parece que todos no local estão mais felizes e apaixonados e que a vida deles é muito mais legal do que a sua. Enquanto são trocados carinhos e beijos começam a se tornar audíveis as risadinhas, os comentariozinhos e um monte de coisas começam a ficar no diminutivo com vozes agudinhas. O caminho até o Café nunca foi tão desconcertante e era difícil manter o foco e tentar escrever algo ou simplesmente produzir uma imagem na cabeça. Quando finalmente chegou no ponto em que descia, o Artista andou pelo corredor de olhos virados ao passar pelos casaizinhos e quando por fim saiu do veículo bufou como se estivesse prendendo a respiração durante todo o tempo que passara lá dentro.
            Foi então que era perceptível que, se a vida fosse um filme, um “Zoom” ocorreria agora. A câmera viria desde o balcão para se fixar rapidamente nos olhos, agora esbugalhados, do Artista. Hoje devia ser o dia que os deuses tiraram para mexer com ele. Mais casais haviam se alojado no Café e estavam sempre juntinhos e abraçadinhos enquanto tomavam bebidas quentes da mesma xícara. Ele fechou a cara e foi em direção a sua mesa costumeira, mas ao chegar lá percebeu que ela estava ocupada pela Cineasta Desacreditada. O coração do Artista quase parou, então. Tentando manter a postura e fingir que nada estava ocorrendo em sua mente, ele tentou se desviar do possível campo de visão da Cineasta, fazendo assim com que ela nunca percebesse que ele por ali passou e ele então poderia buscar uma mesa solitária ou um lugar ao balcão. Não conseguiu. Ela o viu antes de qualquer movimento, o convidou para se sentar e ele, ainda de cara amarrada, aceitou relutantemente.
            Muitas pessoas já estiveram em montanhas russas. As que não estiveram deveriam ter ido pois é uma ótima experiência e também é parecido com o que acontecia agora na cabeça do Artista. Sua atenção ficava em subidas e descidas. Uma hora ele ouvia o que a Cineasta falava, outra hora ele simplesmente pensava no como os olhos dela eram bonitos. Uma hora ele quase lançava um comentário com uma risada sem graça e em outra hora ele simplesmente tinha a impressão de que o sorriso dela brilhava como o sol. Até que durante a conversa:
            - Pô... Hoje tem muitos casais aqui, hein? Haha, isso me lembra uma vez quando eu estava com Skulz...
            - Skulz? – Perguntou o Artista num salto.
            - Um pessoa que conheço. Enfim... – Ela continuou.
            O mundo do Artista desabou. Tudo trincou, ficou preto e branco e o tempo parou. A voz da cineasta continuava falando como uma assombração bem diante de seu cérebro debilitado, mas ele logo a desligou, adicionando ao mundo cinza uma interferência. Quem era esse Skulz? O que eles já passaram juntos? Por que ela lembrou dele justo agora? O que estava acontecendo!? De repente, o cérebro auto-defensivo do Artista tomou uma decisão brutal e o obrigou a dizer:
            - Eu não consigo me concentrar com você falando... – Ele arregalou os olhos e ficou vermelho. Não queria dizer aquilo, então voltou sua atenção para a folha em branco a sua frente que, no momento, era mais compreensível que o mundo.
            - Beleza! Só queria puxar um assunto, mas fica aí na sua, cara!
            Ela se levantou e foi sentar ao lado do Velho para jogar xadrez e passar um tempo com Viras.

            No balcão ao longe, Geléia começou a rir baixinho enquanto organizava seus copos artesanais e promocionais. Menino Ottis estava trocando cartas de jogo com Thelma quando viu o Artista e a Cineasta se desentenderem.
            - O que aconteceu, Geléia?
            Ele respondeu rindo:
            - Alguém está apaixonado e agindo como tal.
            - Eles deviam namorar! – Disse Thelma de repente.
            Menino Ottis a olhou incrédulo e depois olhou para o amigo Artista sentado em seu canto.
            - Ele é idiota mas nem tanto, Thelma.

"O mundo do Artista desabou. Tudo trincou, ficou preto e branco e o tempo parou."

quarta-feira, 21 de março de 2012

Herói


            “Ah! O início da jornada!” Bradou o Conde em sua mesa, tomando para si a personalidade de um verdadeiro trovador. Romântico, audacioso, de fala rápida e sagaz. Alguns diriam que quase ardiloso, mas com a eloquência de um bardo e o carisma de um líder ele prosseguiu para contar alguma epopeia grandioso para os que estavam naquele momento no Café do Geléia.
            O Conde tinha uma força de personalidade que podia abalar, inflamar e até sobrepujar as almas de seres humanos próximos com suas palavras tão bem ditas e encaixadas em frases quase épicas. Ele continuou seu discurso segurando junto ao corpo um caneco, desta vez com hidromel, e movendo a outra mão para aumentar mais ainda a história que iria se seguir.
            “A jornada deste herói será algo trágico e belo, eu vos digo! O papel do herói é sempre estabelecido em nossas mentes e sabemos que ele é destinado para algo. Mas o que importa, como em toda boa história, não é o final, mas sim o caminho para esse destino tão esperado!” Bebeu um pouco do líquido do caneco deixando um fio bem fino escorrer pelo canto da boca fazendo a barba brilhar sob as luzes que davam a ambientação de uma taverna.
“Veremos, então, na jornada que se segue, os perigos e desafios que se colocarão à frente de nosso protagonista. Estes desafios, não meros encontros de sorte e azar, são na verdade o veículo de evolução do herói! Pois como todos sabem, a maior característica destes protagonistas é o fato de eles virem de um histórico social simples, humilde e imperceptível aos olhos dos líderes de sua terra.” Ninguém interrompeu o Conde por mais que pudesse. Todos faziam silêncio ao assistirem o homem que estava agora, como sempre, em cima de sua cadeira fazendo seus atos como um verdadeiro artista de teatro. Os clientes o olhavam como tal.
            “Ele sairá de sua atual vida por muitos motivos! O desejo incontrolável pela viagem sempre existe. O desejo de ver terras novas e conhecer as culturas e suas práticas é algo que existe neste herói desde seu nascimento, e este é um dos maiores motivos pela sua aventura, por mais que ele não o admita. Existe também a ameaça a tudo que ele julga precioso e querido em sua humilde vida. E aí vemos a eterna batalha do bem contra o mal! Nosso herói passa de simples viajante vindo de um pequeno assentamento humano para um campeão da virtude e portador da glória!” Algumas lágrimas eram visíveis em certos rostos para quem parasse e olhasse. E mais um gole era lançado garganta abaixo pelo nosso escaldo.
            “A jornada também será exemplo de tragédia, como antes dito! Pois o nosso campeão sabe que suas escolhas exigirão sacrifício, e que esses sacrifícios permearão sua alma por toda a eternidade.” Fechou os olhos por um período e todos esperavam a conclusão que devia se seguir pelo tom de voz usado. O Artista Solitário era o único que parecia impaciente com a coisa toda. Por fim se seguiu em tons melódicos: “Mas são estas escolhas e a coragem de seguir em frente que tornarão o nosso personagem aqui dito, o herói da história e alguém que será celebrado por suas escolhas, lutas, perdas e lágrimas... Aos heróis que antes deste vieram!” E ergueu sua caneca, fazendo todos brindarem ao momento. Era uma noite grandiosa.

            Depois dos aplausos e choros terminarem, o Conde se sentou de volta à mesa onde o Artista, a Cineasta, Menino Ottis e K.D. esperavam. Por fim, o Artista disse depois de tentar acalmar os nervos:
            “Você vai ser o Clérigo ou o Paladino afinal?”
            K.D. começou a brincar com as miniaturas.
            “Serei o líder relutante, porém magnífico em sua majestade. Inspirarei medo nos...”
            “Corta essa!” gritou a Cineasta. “Paladino, então?” Disse irritada.
            “Sim. Paladino.” Disse o Conde com um sorriso triunfante.

“Ah! O início da jornada!”

quinta-feira, 15 de março de 2012

O Velho


            Vazio. Era como estava o Café naquela noite. As mesas, cadeiras, xícaras, bancos, todos estavam vazios. Qualquer um que passasse por lá poderia quase esperar um bredo-do-deserto passando pelo ambiente como naquelas cenas de filmes de faroeste durante um duelo mortal. Mas, como todos sabem, nunca algo está completamente vazio e, sendo um estabelecimento publico e de boa reputação, o café estava habitado somente por Geléia, Helen e o Velho.
            Geléia e Helen estavam apoiados no balcão. Helen tomava o seu café de sempre enquanto Geléia mexia para cima e para baixo o sachê que deixaria sua água quente com gosto de mel fazendo assim o famoso chá. Seus olhos fitavam o nada e ele estava com uma cara que expressava a mesma coisa. A televisão estava ligada, mas estava no mudo enquanto passavam desenhos animados que não cumpriam o papel de divertir o publico. A jukebox estava em um volume bem baixo, quase não atingindo os ouvidos de ninguém. Helen olhava o próprio reflexo em seu café e batia as unhas de leve na xícara que exalava um vapor leve que estava, lentamente, se esvaindo.
            A mulher começou a olhar para os lados e, depois de dar um gole leve na bebida, disse:
            - É...
            Geléia, ainda olhando para o nada, respondeu.
            - É... – E suspirou.
            E ali ficaram, naquele silêncio da falta de assunto por mais ou menos dois minutos. Helen então quase teve uma epifania. Percebeu que, em todos os anos que conhece o Geléia como gerente de café, ela nunca soube a origem do Velho. Sua mente então foi atacada por dúvidas. Quem era o Velho? O que ele fazia sempre por lá? Por que ele sempre tinha o sorriso estampado no rosto enrugado? E como certas pessoas se sentiam melhor depois de alguma conversa filosófica com ele?
            - Geléia? – Arriscou por fim.
            - Hm? – Seus olhos arregalaram, mas ainda fitando o nada, de um modo quase catatônico.
            - Qual a história do velho?
            Geléia acordou de seu torpor e olhou para o senhor. Ele estava sentado em seu canto, mãos na velha bengala artesanal e olhava para a porta com um sorriso. O gerente não conseguiu não sorrir ao olhá-lo. O Velho tinha esta estranha aura, algo quase místico, que o cercava. Todos o cumprimentavam dizendo “bom dia” ou “boa noite”, dependia do horário. Ele era quase que como um enfeite do lugar e todos concordavam que ele combinava perfeitamente com o conjunto.
            - Sabe que... eu sinceramente não sei? – Disse Geléia com um ar confuso enquanto levantava uma única sobrancelha. – Sei que já fizeram histórias sobre ele aqui... Alguns dizem que ele é o ultimo bom ser humano da terra. Alguns dizem que ele é imortal. Já ouvi gente dizendo que ele é Deus em pessoa... Eu acredito que ele seja um ótimo cliente. – Geléia parou e pensou um pouco olhando para os cantos do estabelecimento – E também é um bom enfeite...
            - Não chame o Velho de enfeite! – As palavras foram seguidas de um tapa no braço do gerente - Achei que você conhecesse todos os seus clientes... – Helen bebeu mais um pouco do café e olhou para o velho que acenou jovialmente para ela.
            - Ei, ele já estava aqui quando comprei o lugar! E ele sempre fica quando vou embora. Mas acredito que o mais importante seja o fato de que, quando eu o cumprimento com um aperto de mão, sempre acho dinheiro no meu bolso...
            E ali ficaram os dois amigos, conversando sobre os mistérios do “Negro Místico” local enquanto ele sorria para o nada, como se a vida fosse algo que ele conhece de trás para frente.

            Dado algum tempo, Geléia começou a fechar o café e como de costume, o velho ainda estava lá, dessa vez com Viras ao seu lado. Momentos depois, o gerente foi ao banheiro antes de começar a apagar as ultimas luzes. Enquanto estava lá, o Velho se levantou sorrateiramente como um verdadeiro bandido e escorregou um pouco de dinheiro para dentro do bolso do casaco do Geléia, que sempre ficava perto da porta. Viras o olhou virando a cara e com as orelhas para frente.
            - Deixe-o continuar acreditando na magia, garoto.
            E sorriu enquanto se sentava de novo.

"Qual a história do velho?"