O "Café do Geléia", fundado por Giovanni Di PaZZo, começou como um pequeno café na esquina da rua Orlontis com a rua Coronel Verde. Servindo apenas poucas variações do simples café o lugar foi ganhando fama devido ao seu ambiente altamente aconchegante contendo fotos de viagens feitas pelo "Geléia" (apelido carinhoso de Giovanni), relíquias e artefatos adquiridos em suas diversas aventuras pelo mundo em busca do melhor café que existia. Certo ano, Giovanni conseguiu por métodos misteriosos o melhor café que os que ali passavam já haviam provado e começou a plantá-lo e serví-lo em seu pouco famoso "Café do Geléia". O lugar ganhou fama pelo seu café fabuloso e pelo ambiente que sugeria um conto de histórias entre amigos. Agora vivemos estas histórias... Bem vindos ao "Café do Geléia".

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Natal


            Todos sabem que o natal é uma época mágica. Muitos não querem acreditar nisso, mas nessa época, mesmo estes que desacreditam, se lembram de pessoas com quem quase nunca falam e compram presentes para familiares que aparecem em casa uma vez ao ano. É uma época que lembramos de todos mesmo que por um segundo e é também uma época para se passar com a família comendo, bebendo e contando histórias.
            Alguns preferem passar o natal com seus amigos mais próximos, seja por opção ou não. E esse era o caso daqueles que se encontravam no fechado Café do Geléia naquela noite. Todos estavam lá e o Geléia havia fechado o local e juntado algumas mesas para acomodar todos enquanto ele, Helen e a Cineasta terminavam de preparar uma deliciosa ceia. A mesa estava lindamente posta. Helen havia usado talheres de prata e a melhor louça que geléia tinha disponível e havia enfeitado a mesa com guardanapos e copos com temas natalinos.
            Enquanto a ceia estava ficando pronta os outros conversavam à mesa tomando goles de vinhos trazidos das terras do Conde.
            - Este que tens em mãos agora, artiste, é um clássico Chateau De Verenaux Aux Blendeau du Vin! – Dizia enquanto servia a bebida ao Artista Solitário.
            - É seco? – Perguntou o Artista com cara feia.
            - É doce. Suave, com um leve tom de esperança. Um vinho muito honesto e...
            - Ok, Ok. Vou experimentar. Sabe que não sou de beber e essa sua habilidade de sommelier me irrita!
            - Rá, Rá! Vai querer mais depois desse! Ninguém bebe apenas uma taça de Chateau De Verenaux Aux Blendeau du Vin!
            - É um nome bem comprido hein! – Disse Geléia chegando com travessas.
            Todos se aproximaram mais da mesa. Algumas travessas eram com saladas altamente enfeitadas e outras continham aperitivos deliciosos, especialidade do Geléia! A mesa farta enchia o coração do Viajante com um sentimento que o impedia de não sorrir. Ele preparava seu prato com cenouras, alface, tomates e brócolis, tudo temperado com azeite, sal e um molho de mostarda, alho e maionese feito pela Cineasta. O silêncio imperava no local enquanto todos se deliciavam com as entradas e se empolgavam ao sentir o cheiro que vinha da cozinha ao fundo.
            - Acho que falta uma coisa apenas... – Disse Geléia enquanto se dirigia ao seu velho Jukebox.
            - Precisamos mesmo de música quando não temos um quarteto de cordas depressivo? – Perguntou o Gótico enquanto cutucava sua comida.
            Todos riram e geléia apertou uma série de botões. Dado um tempo a musica começou. Nada mais do que um leve piano em um ritmo de jazz que fez alguns baterem os pés ao ritmo. A coleção de jazz que Geléia possuía era incrível e contava com grandes títulos que todos ali agora apreciavam enquanto o som de piano começava a ser acompanhado por uma bateria leve e um saxofone digno de filmes noir. A noite lá fora estava muito agradável e só faltava neve e uma lareira para tornar a noite perfeita.
            - Espero que não tenham se empanturrado, pessoal. Temos dois perus e esse monte de Conchiglione recheado para serem devorados! – Dizia Helen, seguida da Cineasta trazendo a tão esperada refeição.
            Todos aplaudiram e logo começaram a se servir. Mal haviam todos se servido quando a luz acabou.
            - Não! Um infortúnio dos mais desafortunados paira sobre nós! – Gritou o Conde (que tentou uma pose em cima da cadeira e só conseguiu cair dela).
            - Velas, Geléia, rápido! Os monstros do escuro estão chegando! – Gritou o Menino Ottis enquanto abraçava Diego, que tremia.
            - O que esse moleque está fazendo aqui? – Perguntou Ernesto depois de dar um tapa em Tremoço, fazendo-o entender o medo do amigo e acender um isqueiro.
            Geléia pediu a calma de todos e buscou algumas velas. Curiosamente, a mesa se tornou mais bonita ainda e todos sorriram.
            - Um natal a luz de velas... Romântico, hein? – Disse a Cineasta olhando para o Artista que só respondeu com uma risada e uma boa golada de vinho.
            Mesmo a luz acabando na rua toda, os clientes não ligaram. Estavam comendo, bebendo, conversando e rindo. Depois dessa refeição seria a hora de trocar os presentes e para a ocasião, Geléia havia montado uma bela árvore de natal e todos deixaram lá os presentes que haviam comprado. As sacolas e caixas estavam todas amontoadas em pilhas coloridas que deixavam a simples cena contra a luz das velas algo digno de uma lágrima.
            Geléia se sentou em uma poltrona e a arrastou para perto da árvore. Todos se sentaram a sua volta e ficavam aguardando ele distribuir os presentes. Menino Ottis tinha ganhado uma espada laser com 10 efeitos sonoros. O Gótico havia ganhado um relógio de bolso com uma foto antiga de uma mulher deprimida. O Conde tinha ganhado um manto roxo e dourado que acompanhava um capuz com os mesmos detalhes. Todos ganharam presentes excelentes e sorriam ao olhá-los e aprecia-los. O Artista tinha ganhado um conjunto de lápis de esboço Van Gogh e ficou olhando-os e pensando “Mas nunca que vou usá-los! Lápis acabam e esses são preciosos!” e enquanto se perdia em pensamento a Cineasta se aproximou.
            - Obrigado pelo retrato do “Casablanca”. É um filme favorito! – Ela se sentou ao seu lado.
            - Como sabia que era presente meu? – perguntou segurando a caixa de lápis que sabia que era presente dela.
            - Eu simplesmente sabia. – Sorriu. – E aí? Gostou dos lápis, mané?
            - Adorei! Mas vou ter medo de usá-los... Eles acabam...
            - Ei, os comece no ano novo e termine de usá-los ao final dele para representar o fim de algo e o início de uma coisa melhor! – Ela sorriu e o beijou no rosto.
            Ele ficou perplexo por um tempo e deu um abraço nela.
            - Obrigado. Tenho certeza que adorarei usa-los.
            - Bom mesmo. Eu os dei para serem gastos. – Ela sorriu e depois se levantou para ir conversar com Helen.

            Foi então que a luz voltou. E sabem de uma coisa? Ninguém percebeu pois eles não precisavam da árvore iluminada ou de lustres garbosos. Tudo que eles queriam estava bem ali, naquele Café, naquele momento com as pessoas que importam para eles. E Geléia sem poder esconder a felicidade com aquele sorriso gordo olhou para a cena e disse:
            - Um Feliz Natal de verdade...

Feliz Natal

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

É tudo um jogo


            Todos já tiveram contato com jogos de tabuleiro. Eles estão em nossa cultura faz gerações e quando o ser humano atinge uma certa idade, ele joga jogos de tabuleiro. Desde “Detetive”, “Jogo da Vida” e “Banco Imobiliário” até os jogos mais obscuros que só se consegue importando. Mas os clássicos nunca morrem e não importa que jogo esteja sendo jogado pela maioria, sempre há alguém jogando xadrez.
            Era uma noite calma e a temperatura era agradável para se tomar um café no bom e velho estabelecimento. O local estava movimentado e como era de costume naquele dia da semana, as pessoas estavam jogando jogos de tabuleiro. O Artista estava jogando “Perfil” com a Cineasta. Diego, Ernesto e Tremoço estavam jogando “Banco Imobiliário” e Ernesto estava ficando muito nervoso. Menino Ottis, K.D., Thelma e Gregório estavam jogando um jogo que parecia complicado por conter miniaturas e mapas. Todos estavam fazendo algo do tipo enquanto apreciavam suas bebidas, menos o Viajante.
            Ultimamente todos perceberam que sua Bagagem Emocional estava maior e o homem agora custava a levá-la de cá para lá. Ele estava ali parado bebendo seu café preto quando viu um velho em um canto remoto do estabelecimento, sentado e com um sorriso estampado no rosto enquanto olhava para um tabuleiro de xadrez montado à sua frente. O Viajante viu o que todos estavam fazendo e, vendo que o velho estava tão quieto quanto ele, decidiu se aproximar.
            - Boa noite, senhor. – Arriscou.
            O Velho levantou o rosto para que o Viajante visse seu semblante por debaixo do chapéu.
            - Sim, meu jovem? – Ele disse abrindo de leve os olhos.
            A pele negra do homem tinha rugas que lhe davam um ar centenário. E o cabelo branco era impecável e da exata mesma cor de sua roupa.
            - Se importa se eu jogar uma partida com o senhor? – Perguntou o Viajante se apoiando na cadeira.
            - Sim, por favor. Sente-se.
            Ele se sentou e se ajeitou. Começou a olhar o tabuleiro enquanto ao fundo de sua visão o velho se voltava lentamente para a mesa e trazia a cadeira mais para perto. Seu sorriso não sumia. Os dois ficaram se olhando até que o velho gesticulou para o homem.
            - O desafiante começa. Por favor, jovem.
            O Viajante foi tocar em sua primeira peça, o Cavalo, quando o velho o interrompeu:
            - Tome seu tempo, garoto.
            Mas ele já havia pensado em sua jogada e mexeu sua peça. O Velho o fez com a exata mesma rapidez e o jogo assim se seguiu. Talvez pela inexperiência do Viajante, ou talvez pelo conhecimento do senhor sobre o jogo, ele perdeu e ali ficou olhando o tabuleiro tentando entender onde ele errou.
            - Você é bom, senhor.
            O senhor começou a ajeitar as peças e deu uma leve risada com a voz rouca, digna de um cantor de blues.
            - Quer tornar o jogo mais interessante? – Perguntou o velho enquanto ajeitava o Rei.
            - O que tem em mente?
            - Você não terá nada a perder além do jogo. Mas se ganhar de mim eu te dou algo de muito valor.
            - E isso seria?
            - Algo de muito valor. Acredite. – E abriu um sorriso levemente amarelado.
            - OK. Eu topo.
            E eles jogaram mais uma, duas, três partidas naquela mesma noite. O Viajante perdeu todas e franzia a testa a cada novo jogo enquanto o velho simplesmente sorria e dizia para ele ir com calma e pensar em seus próximos movimentos. Quando já estava tarde o Viajante se retirou e o velho continuou por lá com seu sorriso e o tabuleiro sempre montado à sua frente.
            Toda semana o jovem ia até o Café com o intuito de jogar com o velho e toda semana ele perdia. Ele praticou e praticou jogando sozinho e com outras pessoas, mas ele sempre perdia do Velho. Começou a vir mais vezes ao longo da semana, cada vez mais determinado a ganhar ao menos um jogo. Todos perceberam duas coisas nesse tempo todo: Uma era que a cadeira à frente do velho nunca era tomada por ninguém além do Viajante, outra era que a Bagagem parecia cada vez mais leve.
            Foi em um fim de tarde muito bonito e sob um céu laranja flamejante que o maior jogo aconteceu. O Viajante veio com a determinação de sempre, disposto a derrotar o Velho e se sentou na cadeira, fitando o tabuleiro grande que se estendia a sua frente.
            - Lembre-se: sem pressa. Pense em seus movimentos.
            O Viajante concordou com a cabeça e começou mexendo sua primeira peça. A partida estava acirrada, peça atrás de peça era tomada pelos dois jogadores e a partida se estendeu e se estendeu até o sol dar espaço a lua para ela ascender cada vez mais. As pessoas começaram a se reunir em volta da mesa para ver as jogadas até que... Xeque-Mate! O Viajante havia conseguido!
            -... Ganhei? Rá! Ganhei! ...não acredito... – Se esparramou na cadeira.
            O Velho gargalhou e disse aos risos:
            - Sim, você ganhou, meu jovem e como prometido eu lhe daria algo de valor.
            O senhor colocou a mão no bolso da camisa e de lá tirou uma moeda e a deu ao Viajante que a olhou incrédulo.
            - Uma moeda? – Era uma moeda de cobre tão velha quanto a humanidade. Não tinha um valor escrito e o rosto talhado nela era indecifrável. Ele não sabia o que fazer com aquilo, mas guardou da mesma maneira, como símbolo de uma vitória.
            - Obrigado, senhor. – Ele se levantou e pegou sua Bagagem enquanto se dirigia para fora do Café. – E a propósito, bom jogo, hein? – Sorriu. O Velho sorriu de volta.
            Ele ficou olhando a moeda enquanto se dirigia à porta e foi parado por um homem vestindo um terno muito bem cortado.
            - Com licença, meu amigo, mas não pude deixar de notar a moeda em suas mãos. Será que eu poderia dar uma olhada?
            O Viajante deixou e o homem a olhava fascinado.
            - Meu amigo. Estou disposto a lhe dar algo por ela! Veja bem, esta é a moeda que falta para eu completar uma coleção iniciada à muito tempo... E eu estaria disposto a dar algo de valor sentimental por ela. – O homem mexeu nos bolsos e tirou um simples botão branco. – Pertencia ao uniforme do meu pai que faleceu durante seu tempo de serviço no exército...
            Com espanto no rosto, o Viajante aceitou o botão e disse com um sorriso nostálgico no rosto:
            - Troco com a maior honra, senhor. Este botão era o que faltava para a coleção que comecei com meu irmão quando éramos jovens... Eu sempre quis completá-la... Obrigado. Mesmo!
            Dito isso, os dois partiram. E o Velho deu mais uma risada.

            Geléia veio ao lado do velho lhe trazendo seu café com leite e perguntou sorrindo:
            - O que fez desta vez, senhor?
            Ele sorriu e disse:
            - Eu apenas o ajudei a apreciar um jogo. Ele carregava muita mágoa e culpa consigo.
            - Rá, rá! Acho que quando focamos nossa força de vontade em algo novo, tendemos a nos esquecer de sentimentos que no fundo...
            - Só fazem peso. – Concluiu o velho
            Os dois sorriram juntos enquanto o Velho apreciava sua bebida.

"Lembre-se: sem pressa. Pense em seus movimentos."

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

O Horror

            Certa vez um autor disse que era errado associar o horror ao escuro, o silêncio e a solidão. Ele até poderia estar certo, mas no escuro, o medo é sempre muito maior e ele com certeza é um dos medos mais comuns em mentes primitivas como a mente humana.
            Era noite e uma lua gibosa se estendia pelo céu noturno como um mau agouro navegando entre estrelas. O Café estava aberto, mas já era tarde da noite e ninguém mais passava pela porta fechada. Os clientes de sempre estavam lá e haviam juntado algumas mesas para sentarem todos juntos enquanto Geléia tentava achar algo que prestasse para ser assistido na televisão.
            - Ei! – Interrompeu Menino Ottis ao ver que, talvez, nenhum canal prestasse. – Vamos aproveitar a noite de hoje para contar histórias de terror!
            Todos pararam de tomar suas bebidas e olharam para o garoto enquanto a Cineasta arriscava:
            - Não está tarde demais pro Ottis estar aqui, Geléia?
            Ottis se sentou emburrado.
            - Oi? – Respondeu um Geléia distraído. - Ah, sim! ... Acho que sim. Mas ele já está aqui, certo? E gostei da idéia dele!
            - É, nada melhor do que se reunir em um local favorito e contar histórias. – Disse o calado Viajante depois de degustar um pouco de seu café preto.
            Dita essa ultima frase as luzes foram apagadas e Geléia deixou uma vela grande no centro da mesa e se sentou com os outros.
            - E quem começa?
            - Eu tenho uma história! – Bradou o Conde se levantando de sua cadeira. – Ela tem um amor perdido! Um duelo com a própria morte e uma entidade que não pode ser nomeada por meros modos que outrora...
            - Peraí, cara! – Disse o Artista. – Vamos começar com algo mais leve... Isso parece uma saga!
            Uma luz de celular se acendeu logo abaixo na cara da Cineasta.
            - Então eu vou contar uma! A história de um espírito japonês, a Kuchisake Onna... – Todos se aquietaram e ela logo começou. – Dizem que há muito tempo atrás, no Japão feudal, um samurai tinha tudo que queria. Uma posição como guarda-costas do Shogum, todo o dinheiro que quisesse, terras e, o seu bem mais precioso, a mulher mais bela da província. Ele a amava mais do que tudo, mas o mesmo não podia ser dito dela. Ela o traía com outros homens quando ele estava longe em batalhas e nenhum homem a negava, por mais que ela fosse esposa do Samurai mais temido do local. Um dia, este samurai a encontra com outro homem! Ele mata o homem e com a mesma espada ensangüentada se aproxima cada vez mais de sua mulher aterrorizada.
            Ela fez uma pausa e batia na mesa de madeira imitando passos. Sua voz baixou levemente quando ela retomou:
            - Ele perguntou a ela “Você se acha muito bonita, não é?”. A mulher nada respondeu então ele perguntou de novo “Você se acha muito bonita, não é?”. Ela só implorava para que ele parasse e então ele disse “Eu vou te dar algo para que ninguém mais te ache bonita!” e logo cortou a boca da mulher... De orelha a orelha... – Todos se assustaram. – E ele a deixou lá para morrer. Dizem que o espírito dela vaga até hoje e pode ser encontrado em noite com neblina como a de hoje. Ela possui um sobretudo e uma mascara cirúrgica para esconder sua aparência e dizem que debaixo do sobretudo existe uma tesoura... PARA CORTAR AS BOCAS DOS DESAVISADOS!!!
            O Conde estava debaixo da mesa. Menino Ottis estava abraçado com o Artista solitário e o Viajante não conseguia levantar sua xícara.
            - ... Excelente! – Exclamou Geléia. – Alguém tem mais alguma?
            Um vento gélido soprou pela janela mais próxima do canto mais escuro da mesa onde estava o Gótico com seu olhar pesado. Um arrepio subiu pela espinha de todos e a Cineasta apertava forte a mão do Artista que sorriu idiotamente com o gesto.
            - Eu tenho uma, se me permitirem contar diante de tão fatídica noite...
            Todos estavam calados diante da imagem alta e sombria que se projetava na luz fraca falando com aquele tom grave de voz, como uma voz direto da sepultura.
            - Por favor, amigo.
            O Gótico se aproximou da luz da vela e começou:
            - Minha história começa em uma noite como esta... Uma garota voltava para sua casa sozinha depois do colégio. Enquanto andava, ela percebeu que a rua estava mais deserta que o normal. Ela ficou muito inquieta, seu estresse já estava demais para agüentar. Seu namorado havia terminado com ela, ela não estava indo bem no colégio e seus pais brigavam cada vez mais. Ela continuou seu percurso pela rua levemente escura pelas luzes fracas dos postes e ao longe ela viu algo.
            As pessoas se aproximavam do Gótico e de si mesmas para lidar com o terror do momento. Ele continuou com sua voz de cemitério:
            - Ao longe ela viu o que parecia ser uma mulher. Ela vestia um pijama velho e ela mal conseguia ficar em pé. A garota estranhamente se sentiu compelida a ir à direção da figura e quanto mais se aproximava, mais o seu medo aumentava, pois ela viu que os membros da moça estavam retorcidos! A garota parou. – O Gótico fez uma pausa dramática e olhou seu público que tremia tanto que era quase possível ouvir o barulho. – Ela parou e a forma a sua frente rapidamente torceu a cabeça para trás produzindo um barulho de pescoço quebrado! A garota ficou tão assustada que simplesmente saiu correndo não importando para onde e quando ela percebeu, ela estava próxima da linha do trem. Mas já era tarde... O trem passou em toda sua velocidade e partiu a jovem ao meio! – Todos saltaram de seus lugares. – O corpo da jovem nunca foi encontrado e ela foi dada como desaparecida... Mas alguns que conhecem esta história dizem que a moça anda por aí, um torso rastejante, com uma foice, andando apoiada apenas nos cotovelos, procurando vítimas para dilacerar. E alguns dizem que a menina estava grávida quando morreu e que agora, de seu ferimento aberto no abdômen, sai uma parte de um bebê que sempre chora para sua mãe parar!
            Todos gritaram e se aproximaram. O Artista meio que fechou os olhos e soltou um riso bobo quando a Cineasta o segurou.
            - Ah! Essa foi muito boa! Será que alguém mais...
            Geléia foi interrompido por um som que calou a todos. O som de algo rastejando e um metal raspando em algum lugar. Geléia olhou para trás, mas o escuro era muito então ele se levantou para ver o que era. O silêncio durou pouco e se seguiu com o som de algo de metal caindo. Todos os clientes saíram correndo do café gritando e derrubando cadeiras.

Geléia percebendo o alvoroço deu uma risada e prosseguiu em direção ao barulho e viu que nada mais era do que seu gato, Voltaire, mexendo em algumas tralhas. Ele o segurou nos braços e disse sorrindo:
            - Voltaire, Voltaire... Você assustou todos aqui, hein! – Fez carinho em seu queixo e ficou assustado quando percebeu algo...

            Ele não havia apagado as luzes antes das histórias começarem...

O Gótico se aproximou da luz da vela e começou: "Minha história começa em uma noite como esta..." [...]

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Dia Chuvoso


            Às vezes as melhores memórias vêm em dias chuvosos. A chuva tem esse poder estranho, ela cai alto do céu, bate no chão e as milhares de gotas fazem um som agradável, quase hipnotizante, que faz aqueles que estão dentro de um aposento ou estabelecimento pararem por um instante para ficar observando a água escorrendo pelos vidros, descendo rua abaixo como um pequeno córrego ou saindo por uma velha calha no seu canto favorito.
            Existem pessoas que vêem a chuva como uma oportunidade para sair, sem rumo, e pensar em tudo, tudo que vier à cabeça durante sua caminhada ou passeio de carro por um mundo cinza que a poucos agrada. Alguns pegam seus guarda-chuvas e vão embora a pé e chuva adentro enquanto outros pegam as chaves do carro e dão a partida para uma jornada curta, mas muito esclarecedora por mais que deprimente às vezes. Mas uma coisa que todos esses peregrinos do dia-a-dia fazem é parar em algum momento, estejam eles longe ou perto de casa, eles simplesmente não querem voltar. O asfalto molhado que produz o som familiar de rodas espalhando água pelos cantos é agradável aos ouvidos depois da jornada e faz com que a pausa pareça mais ainda um santuário dentro de um mundo agitado que nunca dorme ou pára por causa das lágrimas dos céus.
            Neste momento estas pessoas escolhem locais favoritos ou locais novos para ser seu santuário temporário. Pode ser um restaurante onde os aperitivos e pratos principais já foram provados em ótimos momentos da vida e a bebida desce com um gosto nostálgico que trás um sorriso inconsciente e leves cócegas na espinha. Muitas vezes o santuário é uma livraria onde nem sempre o silêncio impera, mas todos estão focados em leituras, em buscas infinitas por livros que eles mesmos não sabem que buscam. Este santuário se torna mais um lugar onde se está cercado de pessoas, sons e histórias, mas ao mesmo tempo se está sozinho. Mas na maioria das vezes, este lugar é um café. Um estabelecimento em uma esquina pouco movimentada que estranhamente atrai toda sorte de indivíduo. Muitos passam, tomam seus cafés rápidos e outros ficam. Principalmente em dias chuvosos.
            E enquanto lá estão, observando a chuva cair, vêm as memórias. Um homem com muito que contar, mas sem muita vontade de fazê-lo pode ver seu irmão longínquo na chuva e sua saudade correrá pelo seu corpo como a água que cai. Uma jovem diferente com muito conhecimento de pouca aplicação pode ver seus sonhos mais distantes no vidro molhado por pequenas cachoeiras e dar um esperançoso sorriso. Um menino pode sair lá fora e pular em poças com seus amigos, rindo e se divertindo em mais uma situação que torna sua vida tão agradável. Três amigos podem chegar encharcados, se sentar e logo começar a discutir idéias sem muito se entenderem, mas gostando do momento que passam juntos.
            E ao mesmo tempo em que tudo isso pode acontecer, também pode existir um jovem. Um jovem com sonhos, idéias e toda uma história. Ele pode olhar para a janela, tirar seu gorro e lembrar de muito. O que o fez chegar até aqui, as pessoas que ele já amou, as pessoas que se foram, as pessoas que não o compreenderam, as pessoas que nunca vão voltar, os amigos que se vão sem dar explicação. Tudo. E ele pode ficar olhando pela janela por horas enquanto o gerente do lugar às vezes se pergunta se algo foi arrancado daquele jovem ou se ele talvez perdeu alguma coisa pelo caminho e esta é a hora de se arrepender.

            O jovem até poderia se dirigir ao seu amigo gerente e dizer que está tudo bem. Mas ele está muito ocupado pensando o tempo todo no sentimento tão antigo que finalmente voltou para seu coração, assim como a chuva que cai.

"Ele pode olhar para a janela, tirar seu gorro e lembrar de muito."

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Escola

            - Como foi hoje?
            Foi a primeira coisa que o Menino Ottis ouviu ao entrar no café. Geléia sempre perguntava a mesma coisa quando o garoto voltava da escola e Ottis sempre respondia a mesma coisa:
            - Como assim? – Se sentou ao balcão.
            - Ora, você sabe. Aprendeu algo novo? Aconteceu algo de engraçado? Sabe... Quando se tem a sua idade a escola é sua vida.
            - Infelizmente, Geléia... Infelizmente...
            Geléia terminou de passar um pano no balcão e trouxe o refrigerante de sempre para seu cliente quando percebeu um roxo em seu rosto. Ele sabia que aquilo era praticamente da rotina de Ottis, mas puxou assunto da mesma maneira.
            - Foi aquele valentão do Tales de novo?
            - O que? – Ottis arregalou os olhos e olhou para o gerente. – Ah, sim... Acho que nunca vou entender o que ele ganha com isso, Geléia. As vezes acho que devia usar capacetes como KD. Da ultima vez ele colocou um capacete oficial do jogo “Halo” que deixou a mão do Tales doendo por uma semana.
            - Você deveria dar uma lição nele, Ottis.
            - Como eu posso dar uma lição em um repetente de 90 metros de altura?
            Geléia gargalhou e Ottis fechou a cara.
            - Ahh, garoto... Brigar é errado. Então se ele entrar em uma briga com você, você deve fazer tudo que é errado! Dedos nos olhos, mordidas, cuspe, chute no...
            - Você precisa de reforços! – Disse uma voz que vinha lá de trás.
            Menino Ottis e Geléia olharam para a porta enquanto a figura larga se aproximava acompanhado de uma bem esbelta. O Artista solitário andava com um ar irritado e ao seu lado vinha a Cineasta, curvada e levemente cansada.
            - Eu posso te ajudar com esse problema, garoto.
            - Você sabe artes marciais e vai tentar treina-lo? – Perguntou a Cineasta, rindo acompanhada do Geléia.
            - Não. Mas eu sou mais velho e posso te ajudar a arrebentar esse Tales. Que, aliás, tem nome de folgado! – Todos concordaram com a ultima frase.
            - Qual é, cara... Você vai mesmo ajudar o moleque a bater em outro? – Dizia a Cineasta soando preocupada.
            O Artista se aproximou dela e sussurrou:
            - Na verdade só quero assustá-lo. Sabe... Faze-lo molhar as calças.
            - Ah, sim! Você é realmente assustador, amigo! – Deu um tapinha em suas costas.
            O Artista e Ottis então combinaram de se encontrar no dia seguinte na saída da escola para acabar com a raça de Tales. Poucos sabiam, mas um arrepio subia pelas costas do Gótico e menos pessoas ainda sabem que sempre é bom não ignorar tais sinais.

            No dia seguinte o Café estava aberto aos poucos que por ali passavam, como sempre. Alguns tomavam cafés, outros pediam seus lanches e como o horário não era o mais movimentado, o silêncio era quase palpável no local. Geléia estava trocando os canais da TV acima do balcão quando ouviu algo parecido com o murmúrio de algo que há muito já deveria ter saído deste plano de existência e ao olhar para os lados percebeu que o Gótico se levantara de sua cadeira em um canto escuro e olhava pela janela.
            - Está tudo bem, amigo? – Arriscou o gerente.
            - Um vento gélido e fatídico se aproxima...
            Ouviu-se o sino acima da porta. O Artista estava entrando e Ottis o acompanhava, os dois discutindo nervosos sobre como um deveria ter usado um gancho de esquerda, sobre como deveriam usar capacetes e Geléia teve certeza de ter ouvido algo a respeito de “soltar Hadouken”.
            - Como foi hoje? – Perguntou e notou que os dois possuíam olhos roxos.
            - Ele não sabe brigar, Geléia! – Reclamava o garoto enquanto empurrava o Artista de lado.
            - Ei, Ei! Eu sei brigar! Mas se você tivesse me falado que ele repetiu de ano 19 vezes, talvez eu tivesse me preparado melhor!
            - Ah, qual é! Você é inútil, cara! Eu vou é comprar um capacete do Rocketeer!
            - Da próxima vez não peça minha ajuda, moleque!
            O silêncio era desconfortante, mas o Gótico sorria. Passados alguns minutos, o Artista se aproximou furtivamente do gerente.
            - Geléia. Tem como marcar um café com chantilly e uns pães de queijo na minha conta? O Tales roubou meu dinheiro...
           
            Geléia gargalhou e começou a preparar o café para seu cliente de cara emburrada. Quase sentiu saudades dos tempos de escola... Amigos, aulas, risadas... Até que olhou o olho roxo do artista. “Ainda bem que acabou” disse a si mesmo depois de pensar melhor.

            E por falar em pensar melhor... Como o Menino Ottis sabia quem era o Rocketeer?

"Ah, qual é! Você é inútil, cara! Eu vou é comprar um capacete do Rocketeer!"
 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A Cliente Nova

 A sineta pendurada na porta do Café anunciava a entrada de mais uma cliente. Geléia a olhou com o canto dos olhos, sem parar de enxugar o copo com o pano de prato há muito encardido. Apesar das diversas mesas vazias, em decorrência do horário, ela se sentou ao canto do balcão. Completamente molhada pela chuva, tirou o casaco e o gorro ensopados e os apoiou no banco ao lado.
            Geléia enxugou as mãos com o mesmo pano encardido e andou até a moça. Era uma cliente nova, coisa bastante rara em dias de chuva tão forte como aquele. A cliente tomou um susto ao ouvir a sua voz, como se não esperasse ser atendida.
            - Gostaria de algo para beber senhorita? Um café ou chá?
            - Um café seria bom! Estou tremendo de frio, ainda mais molhada desse jeito.
            - Vai querer comer algo também?
            - Não, só o café está ótimo.
            Ela foi servida rapidamente. O café fervendo esquentava seu corpo e reanimava um pouco seus ossos. Não possuía pretensões de ficar ali, nem sequer teria entrado, mas a chuva não lhe deu outra opção e agora parecia querer manter-la por lá. Bebeu o café vagarosamente enquanto olhava ao redor, analisando os outros clientes. Um garoto tomava refrigerante, novo demais para estar sozinho num lugar como aquele, no entanto estava. Um rapaz de gorro que desenhava incessantemente sugava seu café gelado pelo canudo sem sequer olhar para o copo. Uma moça jovem, de cabelos compridos e óculos falava alto ao celular, batendo com uma caneta em sua xícara de café; falava sobre câmeras, carros, ajudantes e um papo estranho que a nova cliente não conseguia compreender.
            Mas quem chamou sua atenção mesmo era o senhor sentado no canto mais afastado do Café, cabelos pretos já acinzentados, óculos de leitura, um casaco de frio velho e surrado. Ele fazia anotações num caderno que parecia ter a sua própria idade. Na mesa a sua frente havia algumas fotos do tipo Polaroid já quase desaparecidas, algumas moedas douradas, um relógio de bolso e alguns cartões postais. Ele olhava os objetos, fazia anotações, voltava a analisá-los e erguia as sobrancelhas.
            - É sempre bom ver clientes novos por aqui – disse Geléia se aproximando da moça para recolher sua xícara de café já vazia – Geralmente, em dias chuvosos assim, os velhos amigos são os únicos aparecer.
            - Todos aqui são habituais? – disse a cliente demonstrando certo interesse por aquelas pessoas tão curiosas.
            - Ah sim, todos esses. E muitos outros que não estão aqui agora. É raro que estejam todos aqui ao mesmo tempo, mas às vezes acontece. Um pessoal meio esquisito, mas muito legal.
            Ela olhava ao redor analisando cada um minuciosamente e todos eles continuavam com os mesmos afazeres. Geléia se apoiou no balcão e falou com a moça mais uma vez:
            - Não me leve a mal. Eu adoro novos clientes, mas sabe, não tem como não preferir os velhos.
            - Sim, eu entendo. Mas confesso que esse lugar me surpreendeu, talvez eu volte aqui mais vezes também.
            - E será muito bem vinda – Geléia sorriu simpaticamente e logo emendou – Quer mais um café?
            Ela fez que sim com a cabeça e ele foi buscar outra xícara. A chuva lá fora já dava um pouco de trégua, mas ela tinha tempo e iria esperar um pouco mais. A sineta anunciou a entrada de mais um cliente, um homem baixo de cachecol e agasalho carregando uma grande mala de viagem. Ele cumprimentou Geléia a distância e sentou-se ao lado do menino que ainda tomava refrigerante, meio que pendurado em sua cadeira e seus pés mal tocando o chão. “Mais um velho cliente” ela pensou, e nesse instante Geléia já lhe trazia a segunda xícara de café. Antes que ele pudesse sair ela segurou sua mão.
            - Posso lhe fazer uma pergunta?
            - Claro, só espero que eu possa a responder.
            - Quem é aquele senhor ali no canto? Provavelmente alguém que está sempre aqui.
            - Ah, sim! Acertou! Aquele é o Colecionador, provavelmente meu cliente mais antigo e mais fiel. Meio calado, mas um ótimo cliente.
            Ela ficou surpresa. Se era um cliente tão antigo assim, como Geléia não sabia seu nome e o chamava pelo estranho apelido de Colecionador? Aliás, colecionador de quê? Geléia olhou fixo nos olhos da nova cliente e disse:
            - Mas apesar de ser um bom cliente, não recomendo que você converse muito com ele. É uma ótima pessoa e ótimo em ouvir os outros, mas ele sempre pede algo em troca.

"- Não me leve a mal. Eu adoro novos clientes, mas sabe, não tem como não preferir os velhos."

Conto enviado por Fabio Banin (Seria uma veZ...)

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Helen


            - Eu não acredito que você ainda guarda esse monte de tralha, Geléia!
            A mulher de cabelos negros e encaracolados olhava ao seu redor com um misto de confusão e de maravilha. A sala era apertada, mas parecia que se todas aquelas coisas saíssem de lá, daria para abrir um salão de dança.
            - É, eu não sei nem por onde começar a arrumar isso... – disse Geléia coçando a nuca e escondendo uma singela verdade.
            - Você não quer se livrar disso, né? – perguntou Helen, olhando no fundo dos olhos de Geléia e revelando o que ele escondia. Ele só conseguiu dar de ombros com uma cara encabulada.
            Helen sempre foi boa em descobrir as coisas. Ela teria se dado muito bem como detetive, investigadora forense, historiadora e esse tipo de coisa que só é empolgante em filmes e seriados.
            - Um cubo mágico, brinquedos, um monociclo, papéis, propagandas de duas décadas atrás, papéis, uma televisão, um telejogo... Deuses... você já fuçou aqui de verdade? Digo, de verdade mesmo? – ela estava sentada se soterrando nas tralhas em que mexia.
            - Eu entro aqui de vez em quando. Aliás, preciso trocar essa lâmpada aqui. – Geléia pareceu subitamente interessado em uma das lâmpadas que iluminava o quartinho. Estranhamente isso o fez lembrar de quando ele e Helen brincavam de cabaninha na casa da avó dela. Eles tinham cerca de seis anos na época e era sempre ele que tinha que montar a cabana enquanto Helen a forrava com coisas incrivelmente úteis como um controle remoto sem pilha, bonecas velhas, uma escumadeira, duas panelas – que eram usadas como capacetes ou banquinhos – e mais esse tipo de coisa.
             - Lembra de quando a gente brincava de cabaninha na casa da minha avó, Geléia?
            E esse era quase um super-poder dela: ler a mente de Geléia.
             - Claro! Depois de colocar a casa toda dentro da cabana, você se cansava e queria parar de brincar!
            - É, não tinha muito mais o que fazer ali!
            Helen tinha acabado de voltar de viagem. Suas malas ainda estavam atrás do balcão e eram muito pequenas, o que era estranho para alguém que ficou seis anos fora do país. No início havia saído para estudar russo, mas parou no meio e resolveu sair vagando pela Ásia. Ela simplesmente não parava, nunca havia ficado parada em lugar nenhum. Era do tipo de pessoa que vivia viajando sem ter nenhuma fonte de renda, vivia o tipo de vida que só quem vive entende. Geléia estava louco para saber de sua vida fora, mas sabia que perguntar era inútil. Ela falaria dali a alguns minutos, quando eles parassem um pouco e um silêncio fizesse menção de aparecer.

            - Aliás, não tem mais o que fazer aqui. Quer um café, Geléia?
            - Eu não tomo mais café, mas aceito um chá!
            Então os dois saíram do quarto e foram para o balcão, onde o Menino Ottis fingia ser o atendente e mantinha uma discussão fervorosa com Diego sobre os benefícios do refrigerante no crescimento de uma pessoa.

            A luz foi apagada atrás deles e algo terrível no meio daquela bagunça acordava depois de um longo sono.

"Aliás, não tem mais o que fazer aqui. Quer um café, Geléia?"
 Texto enviado por Ricardo Pedroni (Elkreme)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Diálogos

            - Tudo bem. Eu troco meu “Cavaleiro da Pele de Prata”. – K.D. estava com um baralho em mãos e algumas cartas estavam colocadas sobre a mesa. Gregório e ele estavam concentrados olhando diversos tipos de cartas. – Mas só vou trocar pelo seu “Enganador da Estrela Negra”! – Ele apontou para uma carta de Gregório.
            - Impossível! Você sabe que não troco essa carta com ninguém! Ela tem ataque 9 e habilidades como Difamação e Fuzarca. Isso é essencial em qualquer...
            - Ei! – Interrompeu Thelma que estava fitando a mesa a balançando os pés que não alcançavam o chão. – Por que vocês não usam o mesmo baralho? Dividam suas cartas, oras...
            Se K.D. não estivesse usando um capacete de Darth Vader, Thelma teria medo de olhar para ele. Menino Ottis, percebendo a tensão que crescia, decidiu quebrar o gelo:
            - Caras! Vocês ficaram sabendo que o Rodolfo “Recebeu um Hitler”? – Caiu em gargalhada junto a Gregório.
            Thelma e K.D. não entenderam a piada e logo perguntaram do que se tratava “Receber um Hitler”, mas Geléia veio com seus salgados e refrigerantes e logo disse:
            - Acho melhor não falarem disso com uma dama à mesa, certo rapazes? – E partiu em direção à outra mesa, com outro assunto.

            Na mesa seguinte Diego e Ernesto pareciam altamente pensativos olhando para Tremoço fazendo poses. Diego parecia já ter desistido então estava concentrado nos amendoins servidos à sua frente. Foi em meio a mordidas altas que Ernesto arriscou dizer algo:
            -... Só consigo pensar em um avestruz!
            - Avestruz !? Ficou maluco? Este gesto claramente indica um Gorila!
            - Se quisermos que este plano dê certo precisamos melhorar sua interpretação – Ernesto começou a sacar um bloco de notas.
            - Plano? – Perguntou Diego. – Achei que só estivéssemos brincando de mímica...
            Tremoço concordou com a cabeça enquanto Geléia trazia seus respectivos cafés.
            - Um com adoçante, um com cobertura extra e... Sua Soda Italiana, Diego.
            - Obrigado, Geléia – Ele disse com um esboço de sorriso no rosto (Para os que o conheciam, esse era um gesto digno de lágrimas de felicidade).
            - De nada. Ah, e Ernesto... Eu acho que foi um gorila bem convincente.
            Tremoço olhava triunfante para o amigo. Seu bigode, agora com chantilly, não passava respeito algum. E Geléia continuou seu percurso.

            - Mas, cara! Esse assunto é magnífico! Milhares de filmes e livros foram feitos em cima disso... Ou seja, milhões de pessoas pensam nisso! – Dizia a Cineasta levantando as mangas expondo os braços tatuados.
            Depois de um longo olhar com o rosto pesado e maquiado, o Gótico deu sua opinião:
            - É só que... Não vejo motivo para querer viajar no tempo...
            - Como assim!? Seria incrível! Você poderia conhecer o passado e saber sobre o futuro!
            - Mas o passado é uma tristeza que ecoa até hoje nos tornando o que somos... E o futuro é obscuro e terrível quando se trata de nossa natureza, minha cara...
            A Cineasta se massageou entre os olhos depois de tirar os óculos. Os colocou de volta, se debruçou na mesa e disse ao Gótico:
            - ... Eu posso te recomendar um ótimo analista, sabe?
            Quando Geléia chegou, os dois estavam se olhando com um clima tenso.
            - Aqui estão – Disse ele com o ar amigável de sempre – Um capuccino e o vinho de sempre que, incrivelmente, só você pede, meu amigo!
            - Valeu, Geléia! – Disse a Cineasta – Quem sabe com um pouco de bebida meu amigo aqui não se interesse um pouco por viagem no tempo. Geléia o olhou com um sorriso simpático e disse:
            - Assista “Primer”, meu amigo pessimista... Assista “Primer”
            E partiu.
            - “Primer”... Esse sabe o que diz! – a Cineasta sorriu e provou um gole de seu capuccino.

            Era fim de tarde e os clientes eram os costumeiros. Geléia sempre foi eficaz ao entregar os pedidos e recebe-los. Quando o sol estava se pondo e deixando atrás de si as cores mais bonitas no céu, o gerente decidiu ficar à porta do local fumando seu cachimbo para aproveitar o movimento que estagnava. Ao longe, em meio a luz ofuscante do crepúsculo, Geléia podia ver o Artista atravessando a rua e carregando algo.
            - E aí, Geléia! – Ele carregava uma caixa de papelão muito bem cuidada e envolta em papel que parecia turco.
            - Boa tarde, Artiste!
            - Cara, você por acaso conhece um tal de Dióstenes? – Ele perguntava olhando para a encomenda.
            Geléia pensou um pouco e disse:
            - Não me lembro de nenhum. Essa encomenda é para ele?
            - É... Um cara esquisito me entregou ela e disse para eu deixar aqui. Disse que você saberia o que fazer com ela.
            - Deixe no quarto lá nos fundos... Pretendo fazer uma limpeza nele de qualquer maneira.
            O Artista iria até os fundos, resistiria o impulso de verificar dentro da caixa e depois voltaria para sua mesa de costume e pediria por uma porção de pães de queijo e um café com chantilly. Geléia conhecia seus clientes e quando terminou de fumar e já estava voltando para dentro, ele deu de cara com o Artista que logo disse:
            - E que tal alguns daqueles maravilhosos pães de queijo, Geléia?
            Ele respondeu com um sorriso e os dois entraram. Sim, Geléia conhecia seus clientes, afinal eles tornavam este local o que ele era. Seu sonho.

"- Ei! – Interrompeu Thelma que estava fitando a mesa a balançando os pés que não alcançavam o chão. – Por que vocês não usam o mesmo baralho? Dividam suas cartas, oras..."

E eu posso não conhecer todos os meus leitores, mas obrigado a todos por ouvirem estas histórias e tornarem este lugar o que ele é.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Um Presente Muito Especial


O Café do Geléia também servia almoço, não todo dia, é claro, mas apenas em ocasiões especiais. Aquele era um típico dia 29, e como manda a antiga tradição, era data de comer nhoque. Ou gnocchi, como preferir.
            Todos os habituais clientes estavam presentes, a Cineasta, o Conde, o Gótico, dentre outros, aguardando ansiosamente a chegada da massa ao bufê. O Menino Ottis já havia amarrado um pano ao pescoço, para não sujar a camiseta. A refeição foi servida e estava realmente deliciosa, encheu os clientes de satisfação (menos o Gótico, que gemia a cada garfada), afinal, nada como ser bem recebido em um lugar tão diferente de onde você cresceu. Obviamente, nenhum deles era daquele lugar. O Café era notório por ser um refúgio para almas errantes, e muitas vezes, as pessoas que se conheceram e se identificaram em uma noite jamais voltariam a se ver. Nesse clima de aconchego e distância, enquanto todos conversavam, ouviu-se um lamento abafado.
            Não é incomum que alguns se emocionem naquele ambiente, mas não em um dia como esse, por isso, todos se entreolharam buscando encontrar a alma que sofria. No canto do Café, estava o Caixeiro, fitando suas botas com a cabeça baixa. Ao ser questionado sobre o motivo de sua lamentação, o Caixeiro relembrou, com um sorriso nostálgico, as épocas em que rodava as estradas de ferro vendendo mercadorias exóticas. Contou sobre o café de sua cidade natal, o Madigans, e das lindas mulheres que lá freqüentavam. Contou também sobre a infância de outrora e as amizades que a construíram com as mãos inocentes e aventurescas de filhos de artesãos e mercadores.
            A Cineasta jurou entender o que o Caixeiro sentia, mas o velho homem protestou dizendo que o que lhe afligia era diferente, ele não se encaixava mais no mundo. Suas botas artesanais, de couro claro e bem lustradas, já não eram mais objeto de inveja dos outros homens. Em que outro lugar ele poderia recomeçar, a quantos quilômetros dali estaria outra pessoa que poderia entendê-lo? Ninguém sabia o que dizer para o Caixeiro.
            Contou que viajava de trem de vez em quando, tentando se sentir vivo e ativo outra vez; disse, com risadas, que seu momento de maior glória na semana era tomar a insulina para diabetes. Em meio a tantas histórias de uma alma que já não era mais a mesma ele ganhou amigos que durariam uma noite, mas estariam sempre em uma memória tão boa quanto as velhas botas artesanais que tanto caminharam.
Aos poucos, o salão foi se esvaziando, até que só restava o Geléia limpando as mesas e observando as próprias memórias que decoravam a parede. Estranhamente, ninguém viu o velho homem sair.

            Algum tem depois o Menino Ottis relembrou o episódio:
            - O que aconteceu com o Caixeiro, afinal?
            - Não sei ao certo, mas outro dia um homem a cavalo me deixou um pacote...
            - E o que tinha nele?
            - Um presente muito especial... – disse Geléia, olhando para seus pés.

"Suas botas artesanais, de couro claro e bem lustradas, já não eram mais objeto de inveja dos outros homens."

Este texto é um presente muito especial de Walter Neto. Obrigado.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Infância

           Nada como um dia quente de verão. Para certas pessoas o calor é algo irritante só de se pensar, para outras é algo agradável que elas esperam sentir todos os dias. Para uma criança o tempo realmente não importa. Nada é motivo para deixar de aproveitar o dia.
            Mas o dia estava agradável. Um dia ensolarado, com uma brisa refrescante e nenhuma nuvem no céu fortemente azulado. Aqueles que prestassem atenção veriam crianças correndo para lá e para cá com seus brinquedos e às vezes até seus animais de estimação. Mas um grupo se destacava do resto. Se você prestasse atenção veria o Menino Ottis escondido no topo de uma arvore baixa usando um cocar e levando consigo uma espingarda de brinquedo que fazia um barulho de quebrada. Qualquer um diria que ele estava brincando de índio... Mas os adultos são muito sem graça. Ottis sabia que não estava em um parque, ele sabia também que tinha uma missão.
            Do topo da árvore ele podia ver toda a vastidão da Grande Planície. Ele estava fazendo seu turno de guarda para impedir que mais servos da Bruxa viessem até o forte. Seus amigos Gregório, Thelma e K.D. (cujo nome verdadeiro era desconhecido) estavam no forte recuperando forças e traçando novos planos para encarar os servos da Bruxa. Eles eram os últimos sobreviventes da Grande Planície. Todos os outros países já tinham sido dominados e crianças agora eram adultos sem imaginação ou cachorros com empregos e gravatas e o destino do mundo estava agora na mão deste pequeno grupo.
            A vigia estava calma. Calma demais. O fuzil laser de anti-matéria gravitacional deixava Ottis mais confiante, mas o medo nunca realmente saíra de seu coração. A Bruxa era um adversário formidável e seu exército de robôs era quase invulnerável. O vento soprando trazia sons com os quais Ottis já estava acostumado e, embora não fosse admitir se o perguntassem, ele estava quase caindo no sono com o tédio do posto que o colocaram. Mas o tédio logo foi quebrado. O vento parou e a terra tremeu. Ottis logo se levantou, segurou o fuzil com força e logo soprou a trombeta de alerta que foi escutada no forte.
            - Robôs? – Perguntou Thelma que encantava pedras com força explosiva.
            - Ottis nunca soaria a trombeta em vão! – Exclamou Gregório já se levantando e levando consigo seu Bastão Ancestral (feito com madeira da Árvore da Vida).
            Enquanto todos se levantavam, K.D. ficou para trás distraído com os dados que analisava em seu computador de bolso e só percebeu que estava ficando para trás depois de uma pedra atingir seu capacete cibernético. Depois do baque olhou confuso para os lados e viu Thelma parada na porta.
            - Pegue seu estilingue e venha! É hora da grande luta! – Ela correu para fora.
            - Sempre apressados! Eu estava vendo dados de luta em meu computador de batalha! – Gritou enquanto corria atrás do grupo.
            Quando todos chegaram até a arvore de vigia a terra tremia cada vez mais.
            - Cuidado pessoal! Eles trouxeram um Robô M.O.R.T.A.L. dessa vez!!! – Ottis exclamou enquanto olhava o horizonte.
            Todos olharam perplexos enquanto a multidão de ferro e eletricidade se movia em direção a eles acompanhada pelo monte assustador de metal.
            - Eles querem mesmo acabar com este território não é mesmo? – perguntou Thelma sorrindo diante do desafio.
            - O que é um robô M.O.R.T.A.L.? – Perguntou Gregório.
            - Máquina Opressora, Retalhadora e Tática de Assalto Local. É um dos robôs mais fortes da Bruxa! – Disse K.D. analisando seus dados de batalha.
            - Sem tempo para conversas pessoal! Aí vem eles! – Ottis armou seu fuzil.
            Disparos elétricos vieram na direção dos garotos. O chão era acertado com uma força absurda levantando terra e poeira no campo de batalha enquanto relâmpagos eram revidados com pedras explosivas e tiros anti-matéria. O barulho de metal retorcendo e se partindo era alto nas planícies e as crianças estavam fazendo um excelente trabalho. Mas o coração de todos foi partido ao som de uma risada estridente. Todos olharam para cima alarmados e Gregório exclamou:
            - Essa não! É a Bruxa!!! – E saltou para trás de uma moita
            - Bruxa!? Que história é essa Gregório? – Perguntou a mulher horrenda que parava entre eles e a horda de robôs.
            - Ah, mãe! Já é hora de ir embora? – Perguntou Thelma soltando sua capa de invisibilidade.
            - Sim, querida. Vamos encontrar seu pai para jantarmos. – A mãe de Thelma tentava limpar a poeira do vestido da menina.
            - Droga... É, meninos... Acho que os robôs terão que se ver com a gente na próxima...
            - Tudo bem, Thelma. – Disse Gregório enquanto acenava para ela.
            - É! Eles não terão chance da próxima vez! – Disse K.D. já sentando no chão a puxando seu baralho de Magic do bolso.
            - Então até outro dia, pessoal! – Ela correu para alcançar a mãe.
           
Ottis desceu da árvore, largou sua espingardinha, soltou um suspiro e disse:
            - Ainda bem que ela se foi. Mais alguns segundos e aquela garota iria nos trair. Certeza!
            Andou até os amigos sentados na grama e se deitou. K.D e Gregório imitaram o gesto.
            - Foi uma boa luta. – Disse K.D. soando feliz.
            - É... Sabe pessoal. Eu espero que isso não acabe nunca!
            E lá ficaram os garotos. Tramando planos e contando histórias e aproveitando a vida que sua idade lhes proporcionava. Afinal, eles tinham todo o tempo do mundo, por mais curto que ele fosse.

Mas o tédio logo foi quebrado. O vento parou e a terra tremeu.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A Quem Possa Interessar...


            A noite estava tranqüila no Café. O lugar estava com a placa de “fechado” exposta para a rua e só os clientes de sempre ainda estavam por lá. A Cineasta conversava com um Artista que não respondia muito, Menino Ottis andava para lá e para cá e de vez em quando olhava para a televisão ligada no canal de desenhos para ele, o Conde e o Gótico conversavam e o Viajante estava sentado sozinho em seu canto contemplando a noite.
            Geléia estava atrás do balcão mexendo em uma caixa que achara no porão. Quando os clientes perceberam o barulho, alguns vieram ver do que se tratava.
            - E aí, Geléia! – Disse a Cineasta enquanto acenava ao andar. – Qual é a da caixa?
            - Devo dizer que estou assaz interessado nela, meu caro! – Dizia um já empolgado Conde.
            - Algumas velharias que encontrei no porão. Tem algumas coisas bem interessantes aqui...
            Depois de pedir licença o Conde começou a dar algumas olhadas por cima. Interessou-se por uma corrente de pescoço com um retrato dentro. Uma mulher jovem e linda cuja foto devia ter 100 anos ou mais e atrás da qual estava escrito “Para meu amado. Que esta seja uma luz em seu caminho para casa.”.
            - Eis que em algum lugar do globo uma alma se contraiu em desespero por perceber a falta de tal artefato! – o Conde segurava a corrente com força enquanto a segurava acima de sua cabeça onde a face derramava uma lágrima ao pensar na história do item.
            - E estas fitas? – Perguntava a cineasta.
            - Não sei... Mas dê uma olhada nelas em sua casa... Quem sabe não as exibimos aqui em alguma noite? – Respondeu Geléia enquanto pegava, cegamente, um envelope.
            O papel estava lacrado com um selo de cera irreconhecível. O abriu e percebeu que dentro havia uma carta escrita em um papel amarelado e levemente mofado nos cantos. A tinta estava sumindo, mas ainda era legível então começou a ler para si enquanto os outros olhavam os conteúdos da caixa.

            “A Quem possa interessar...
Escrevo isto para contar, a qualquer que possa um dia ler, a minha breve história....
            Nos conhecemos no final de Novembro eu e ela. Éramos dois solitários no mesmo local e nos vimos ao longe. Trocamos olhares tímidos antes de qualquer um tomar uma atitude e ir até o outro para tentar conversar. Não foi surpresa quando eu tomei a decisão e fui até ela dizendo um simples “Oi.”. Ela respondeu timidamente e lá ficamos. No começo a conversa foi mais difícil, mas com o tempo acabamos nos descontraindo e a conversa seguiu muito bem.
            Ela era linda. O grupo que estava fazendo musica ao fundo criava uma trilha sonora perfeita para nós dois. Não sei se ela sentiu o mesmo que eu, mas eu me apaixonei naquele momento. Nos beijamos naquela noite. Seus lábios tinham um gosto único que nunca cheguei a experimentar de novo... Seu cheiro me acalentou a mente e trouxe lágrimas aos meus olhos mais vezes do que posso me lembrar. Ela era linda.
            Ela não era graciosa, era um pouco desastrada. Não era a mais elegante do local. Mas para mim ela era a única e a mais linda naquele momento.
            Mantivemos contato e continuamos nos encontrando.
            Ela adorava passeios em parques. Lembro-me de todos os encontros que tivemos em meio a árvores, flores e piqueniques. Quando o sol começava a se por, ela se levantava, tirava as sapatilhas e, de pés descalços na grama, começava a dançar. Sua silhueta se movimentando escura contra o céu laranja me deixava paralisado olhando cada movimento do corpo curvilíneo. Ela queria ser dançarina e eu a apoiava em todas as decisões que tomava quando se tratava deste e de muitos outros assuntos.
            Eu queria dar proteção, conselhos, amor sincero e felicidade para ela. Mas por mais que eu sentisse felicidade ao lado dela, um pequeno fragmento de dúvida sempre existiu no meu coração por mais que eu sempre o ignorasse. Acredito nunca ter ouvido um “Eu te amo”. Vindo dela eu só ouvia “Eu te amo também”. Mas queria seguir em frente conosco.
            Ela não.
            Durante muito tempo não entendi o porquê. Talvez ela achasse que não tinha afeto o suficiente se comparando ao meu. Talvez ela estivesse cansada de tanto afeto. Talvez eu não estive sendo afetivo o suficiente... Muitas coisas se passavam na minha cabeça.
            Demorei a ter um pequeno momento sem ela na minha cabeça. Eu pensava nela todos os dias e no como poderíamos ter dado certo. Lembrava-me dela dançando. Lembrava-me de seu cheiro e de seu gosto. Do perfume de seus cabelos. Da pele macia correndo pelas minhas palmas...
            Ela depois conheceu outro homem. Tiveram um relacionamento que nunca compreendi... Mas ouso dizer que pelo pouco que ouvi do assunto, ela foi infeliz durante e depois de muito tempo terminado a relação...
            E aqui agora, nesta cama de hospital eu fico em observação para um possível segundo ataque cardíaco e tudo que me pergunto... É se ela viria me visitar...
            Obrigado pela atenção, leitor.”

            Geléia ficou em silêncio por um tempo.
            - O que foi, Geléia? – Perguntou a Cineasta com a mão no ombro do homem. Até o Artista havia se levantado para ir para perto dele.
            -... Gostei desta carta. Ela merece um espaço na parede...
            Ele se apressou e a colocou em um vidro reserva que tinha por perto e o pendurou na parede em um espaço vazio. Ficou observando a nova peça adquirida junto aos outros e falou:
            - Talvez alguém já tenha lido esta carta. Talvez ela tenha ido visitá-lo. Mas acho que esta carta diz muito sobre este lugar...
            Todos o olharam por um segundo esperando a frase que iria se seguir.
            - Aqui é um local que acolhe aqueles que não tem para quem voltar.

"Talvez alguém já tenha lido esta carta. Talvez ela tenha ido visitá-lo. Mas acho que esta carta diz muito sobre este lugar..."