O "Café do Geléia", fundado por Giovanni Di PaZZo, começou como um pequeno café na esquina da rua Orlontis com a rua Coronel Verde. Servindo apenas poucas variações do simples café o lugar foi ganhando fama devido ao seu ambiente altamente aconchegante contendo fotos de viagens feitas pelo "Geléia" (apelido carinhoso de Giovanni), relíquias e artefatos adquiridos em suas diversas aventuras pelo mundo em busca do melhor café que existia. Certo ano, Giovanni conseguiu por métodos misteriosos o melhor café que os que ali passavam já haviam provado e começou a plantá-lo e serví-lo em seu pouco famoso "Café do Geléia". O lugar ganhou fama pelo seu café fabuloso e pelo ambiente que sugeria um conto de histórias entre amigos. Agora vivemos estas histórias... Bem vindos ao "Café do Geléia".

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Aquele Sentimento


            O Artista estava sozinho. O Gótico estava sozinho. Helen estava sozinha. Muitos estavam sozinhos naquele dia. O Café estava quase vazio e poderia ser considerado uma entidade solitária. Geléia estava sentado em seu balcão tentando remover uma mancha na madeira que estava lá havia, mais ou menos, duas semanas. A jukebox estava silenciosa, o vento lá fora estava parado, a presença do gótico não estava arrepiando espinhas e tudo parecia meio fora do comum.
            Helen olhava para os lados desconfiada de algo que nem ela sabia o que era. O Gótico se levantou bebendo absinto, deu um suspiro e se dirigiu até a mesa do Artista que, estranhamente, não estava desenhando ou escrevendo. Ele estava coberto com a própria blusa enquanto olhava o dia lá fora. Um dia cinza, cinza e solitário.
            - Alguma coisa te perturba... – Sua voz causou espanto no jovem que o olhou com olhos trêmulos.
            Depois de respirar fundo e piscar algumas vezes, sua resposta veio serena:
            - É só um sentimento...
            O Gótico se sentou.
            - Você tem pensado muito ultimamente, não?
            O Artista concordou, mas ficando calado e com um sorriso levemente dúbio em seu rosto fofo. Helen, que antes estava distraída mexendo um copo de cerveja, se levantou e foi ver o que os dois estavam conversando.
            - Também estão sentindo algo é?
            Os dois apenas fizeram um som de afirmação e logo Helen se juntou a eles na mesa. Os três ficaram olhando pela janela enquanto o mundo cinza parecia parado e imutável. Alguma coisa pairava no ar e todos se sentiam meio deslocados ou com um leve sentimento indescritível... Aquele que vem quando você pensa em oportunidades ou no famoso “e se...”. Um sentimento quase vazio que recheia sua alma e sua mente com dúvidas que nunca poderiam ser respondidas sem voltar no tempo, ou era aquele simples sentimento de que tem algo errado e você nunca vai saber o que é, você irá simplesmente se esquecer uma hora ou outra.
            - Tô pensando em umas coisas...
            Helen olhou para o Artista com um ar curioso. O Gótico apenas bebeu seu absinto de uma maneira tediosa.
            - Vez ou outra me bate essa coisa... Sabe aquela decisão ruim que você tomou, dentre tantas outras, que poderia ter mudado completamente alguns poucos anos de sua vida?
            Geléia, vendo que os amigos estavam em uma única mesa e juntos, decidiu se levantar para se sentar junto à eles e, ouvindo o que o Artista disse, logo falou:
            - Acho que todos temos essas memórias...
            - Sim – Disse Helen olhando para dentro de seu copo. – Aquela viagem que você tinha a chance de ir mas nunca foi...
            - Ou aquele absinto a mais que você tomou na presença da mais bela rainha da noite... – Prosseguiu o Gótico.
            - Aquela descoberta sobre grãos de café que mudou a dedicação de sua vida. – Disse Geléia, quase esperançoso.
- Ou aquela garota que você nunca devia ter deixado ir... – Lamentou o Artista se lembrando de tudo que estivera pensando recentemente.
E o dia se prosseguiu assim. Desse jeito estranho, anormal, diferente, fora do comum e mesmo tendo todos os lamentos e felicidades do passado vindo a tona, ninguém poderia dizer o que estava acontecendo.

Ao fundo, o Velho sorria como sempre e enquanto Viras, o cão, olhava curioso para os amigos que observavam ao dia pela janela, o Velho acariciava sua cabeça. Ao perceber o olhar inquisitivo de seu amigo animal, soltou uma leve risada e disse:
- As vezes você acha que existe algo errado com o mundo, garoto, e você não consegue dizer para si o que é. – Disse com firmeza, fazendo Viras voltar a atenção para seu rosto enrugado. – Mas na verdade... Você sabe muito bem que existe algo de errado dentro de você.

"Os três ficaram olhando pela janela enquanto o mundo cinza parecia parado e imutável."

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cartas


            Estamos em plena era da informação, era digital, era da internet, chame como quiser, mas se tem uma coisa que gosto de acreditar que todos já fizeram é escrever uma carta. Sim, uma carta. Aquela folha de caderno arrancada do final, aquela folha sulfite avulsa que estava ao seu lado ou mesmo aquele papel todo especial, colorido e as vezes perfumado.
            Todos nós guardamos cartas. Guardamos aquelas que recebemos, as vezes temos o rascunho daquelas que enviamos e muitas vezes temos aquelas cartas que nunca foram enviadas e estão paradas em uma gaveta, cheias de memórias, e juntando pó. As cartas são como nossos melhores amigos. É para elas que podemos contar tudo e tudo que elas fazem é ouvir e guardar muito bem tudo aquilo, por mais confusa que seja sua mente e suas idéias e, é por este motivo que, no fundo, todos gostamos de escrever ou receber cartas. Confesso que não me lembro da primeira carta que recebi, mas tenho certeza que gostaria de tê-la guardado, pois, ela sozinha seria como um espelho refletindo meu passado, fazendo meu cérebro funcionar de uma maneira em que eu me lembraria de tudo que estava circulando minha vida na época em que a recebi. Eu poderia ver o que o remetente pensava de mim e o que ele queria dizer para mim, o que poderia ser importante ou simplesmente uma informação boba com o desejo de ser partilhada.
            Eu estava mexendo em algumas coisas no meu quarto recentemente e achei três cartas. Estes simples papéis foram o suficiente para me desviar do que eu estava fazendo, e do que eu estava indo fazer, para parar e ler aqueles relatos. Eu peguei as três cartas, me sentei em minha cama e cruzei as pernas enquanto me posicionei debaixo da luz incandescente para ler. A primeira carta que li foi uma surpresa de uma amiga e foi ela que me inspirou a escrever. A carta era um desabafo simplesmente, se é que pode se dizer isso, pois ela me disse tudo o que sentia na vida dela com relação a amigos se afastando e ,quando li aquilo, me senti muito mais próximo dela... através de uma carta. Pelo fato de a carta ser escrita com carinho, com pensamento focado e com vontade de querer dizer algo é que elas são tão especiais.
            As outras duas cartas eu guardo dentro da embalagem de um relógio de bolso. Uma caixinha simples com um interior aveludado e no formato do relógio que, sinceramente, é o meu favorito, mas o que eu menos uso. As cartas eram de uma outra amiga, uma ex-namorada, que me escreveu muito tempo depois de termos terminado e ainda assim eu as guardei com todo o cuidado e carinho do mundo, sabendo que elas foram escritas durante um turbilhão de ideias em meio a uma madrugada e, principalmente, escritas por uma pessoa cuja importância em minha vida é imensurável. Aquela carta estava recheada de sentimento, sentimentos estes que guardo cuidadosamente em meu coração e acredito que ela faça o mesmo.  Não pude evitar um sorriso bobo e sincero de vir ao meu rosto.
            Depois de ler as cartas, eu as guardei em uma gaveta cheia de memórias e sentimentos, ao lado de uma carta nunca entregue e embaixo do meu querido relógio de bolso que, curiosamente, nunca atrasa.
            Não sei se existe uma, mas eu gostei da simbologia disso. Acho que preciso escrever uma carta de volta para alguém e só posso esperar que ela seja guardada com tanto carinho e cuidado quanto guardo as minhas.

Você também deveria guardar suas cartas...

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Senhor Chuva


            Já fazia um tempo que um cliente especial estava frequentando o Café do Geléia. Era um homem com um sorriso sereno, olhos calmos e sempre com um sobretudo preto. Mesmo sendo um homem que não chamava muito a atenção, era, no mínimo, um homem misterioso, principalmente pelo fato de parecer um conhecido do Velho, com quem passava horas conversando. Também era misterioso o fato de estar chovendo sempre que o homem visitava o estabelecimento.
            Este era mais um destes dias de chuva frequentados pelo homem que se apresentou para Geléia como “Senhor Chuva”. Em seu canto, sentado e escrevendo, estava o Artista. Ele estava incomodado, pois o Senhor Chuva estava dividindo uma mesa e um cappuccino com a Cineasta que ria, virava o rosto, se acomodava e continuava a conversa com mais risinhos. O Artista tentava se concentrar na sua história onde tudo era como ele queria que fosse mas estava impossível. As risadas dela estavam sendo filtradas em meio aos sons de outras pessoas e chegavam dolorosamente aos ouvidos do pobre Artista tímido.
            Foi assim durante três semanas. Esse tempo todo a Cineasta nem passava ao lado da mesa do cada vez mais deprimido Artista e ele se afundava em sua cadeira, buscando um conforto que, provavelmente, não existia. Choveu na rua e no coração do Artista durante três semanas e o Senhor Chuva trazia consigo uma aura quase mágica que não ajudava na recuperação do Artista. Estranhamente, na última semana começou a chover menos, como se durante as visitas do Senhor Chuva, a própria chuva fugisse dele a cada entrada e saída pela porta.
            Certo dia nesta última semana, acompanhado de uma fina garoa, daquelas que esfriam seu rosto com as pequenas gotículas de água fria que se misturam ao vento, o Senhor Chuva estava sozinho em sua mesa, olhando para a rua lá fora. O Artista pediu ao Geléia o seu costumeiro café, mas desta vez pediu uma porção de bolinhos de chuva e, após recebido o pedido, foi se sentar na mesa do Senhor.
            - Boa tarde. – Ele disse já se sentando.
            Os olhos calmos se encontraram aos olhos casados do Artista.
            - Olá, jovem.
            - Se importa se eu sentar?
            - Você já sentou não é mesmo? – respondeu Senhor Chuva com um sorriso maior que o de costume.
            - Eu só queria saber uma coisa...
            - O que trás uma figura como eu para um café simples como este?
            O Artista levantou uma sobrancelha.
            - Quase isso. Só queria saber o que um homem da sua idade quer com uma garota como aquela com quem tem falado quase todos os dias.
            - A garota dos óculos escuros?
            - É.
            Senhor chuva se reclinou em sua cadeira e olhou para a grande janela, examinando o quadro movimentado que era a cidade lá fora. Deu um gole em seu café e disse:
            - Ela é legal. – Começou – Sabe, quando você está a tanto tempo quanto eu vivendo sem contato com pessoas, a primeira que fala com você já causa um alívio quase que instantâneo. Ela me falou sobre muitas coisas que perdi enquanto estive fora...
            O Artista o olhou apertando os olhos.
            - Ok, mas... O que exatamente você quer com ela?
            O Senhor tomou mais um gole de café.
            - Nada. Eu estou aqui de passagem. Daqui a pouco a chuva vai embora e eu também... Só preciso coletar os pecados e consciências pesadas que as águas dos céus passam para limpar.
            - Parece um trabalho solitário.
            - É. O pouco de sentimento que tenho é quando posso ver o resultado de minha coleta... Mas o coração aquecido por emoções logo é esfriado quando jogo as emoções fora.
            O Artista se sentiu diante de uma presença muito misteriosa e poderosa. Pensou mais uma vez na Cineasta e o Senhor Chuva logo lhe disse.
            - Você me parece perturbado, amigo.
            O Artista ficou quieto. O homem se levantou, pegou um bolinho e disse:
            - Saia lá fora... Deixe que a água limpe sua alma.
            Piscou um olho para o Artista, mordeu um bolinho e se retirou.
            O jovem ficou no Café por mais um tempo e pensou em tudo que estava acontecendo em sua vida no momento. Pessoas que vem em vão, coisas que ele parecia estar perdendo, pessoas que ele queria confiar mas parecia não poder, pessoas que ele achava conhecer e etc. Todos lhe diziam para sair e ver o mundo como se ele fosse um tolo que não aproveita os frutos da vida. Lembrou das pessoas que o cercavam que pareciam não prestar mais atenção nele, mesmo em um conversa entre dois. Pensou no trabalho e no como era frustrante não se achar tão bom quanto aqueles que admirava. Lembrou dos amigos que foram embora. Pensou naquela garota que ele mandou embora quando estavam se dando bem e pensou agora no coração solitário que estava abrigando. Pensou em tudo e tudo começou a subir para a sua cabeça. Foi então que, como em um disparo, ele saiu do café para ir até a chuva forte lá fora. Após abrir a porta seus passos eram acompanhados por respingos de água e jorros causado pelos passos em pequenas poças. Passando pela calçada, atravessando a rua e indo em direção a praça ali perto o Artista ficou ensopado. Chegando na praça, ele parou e jurava que podia sentir cada gota que caía em seu corpo. Podia ouvir cada melodia feita pelos individuais pingos. Era tudo música, a melodia da vida. Ele abriu os braços e deixou a água cair em seu rosto enquanto ele o virava para o céu, fechando os olhos e pensando em tudo que pensara antes. Apagou.

            Acordou depois de muito tempo dentro do Café do Geléia. Todos o olhavam enquanto ele acordava com um sorriso bobo no rosto e, quando ele percebeu isso, arregalou os olhos e se levantou, causando espanto em todos ali presentes.
            - O que aconteceu?
            - Eu te achei desmaiado na praça, cara – A Cineasta falou tocando seu ombro – Cê tá bem?
            Ele estava ótimo. Parecia que sua alma estava novinha. Ele queria sorrir e o fez sem vergonha.
            - Estou ótimo, obrigado. – E se levantou.

            Semanas depois, o Senhor Chuva não apareceu. E não parecia que ia voltar. O Artista estava calmo, mas um certo dia quando estava se preparando para ir embora estava pensando o que tinha acontecido com o Senhor Chuva. Quando estava passando pela porta, o Velho o chamou e começou a dizer:
            - Ele não vai voltar tão cedo, sabe?
            O Artista parou e olhou para o Velho, enquanto ainda segurava a porta.
            - Ele é muito ocupado, mas gostou de você. Até deixou uma mensagem.
            O Artista levantou os olhos e disse:
            - O que ele disse?
            - Ele disse para não se preocupar com sua amiga. Que o dono do coração dela está bem diante dela. Ela só precisa tirar os óculos.
            Com um sorriso, o Artista saiu para encarar o mundo, mas o Velho sussurrou com um sorriso esperto e para si mesmo.
            - Afinal quem precisa de óculos escuros depois dessa chuva?

"Chegando na praça, ele parou e jurava que podia sentir cada gota que caía em seu corpo."