Já fazia um
tempo que um cliente especial estava frequentando o Café do Geléia. Era um
homem com um sorriso sereno, olhos calmos e sempre com um sobretudo preto.
Mesmo sendo um homem que não chamava muito a atenção, era, no mínimo, um homem
misterioso, principalmente pelo fato de parecer um conhecido do Velho, com quem
passava horas conversando. Também era misterioso o fato de estar chovendo
sempre que o homem visitava o estabelecimento.
Este era
mais um destes dias de chuva frequentados pelo homem que se apresentou para
Geléia como “Senhor Chuva”. Em seu canto, sentado e escrevendo, estava o
Artista. Ele estava incomodado, pois o Senhor Chuva estava dividindo uma mesa e
um cappuccino com a Cineasta que ria, virava o rosto, se acomodava e continuava
a conversa com mais risinhos. O Artista tentava se concentrar na sua história
onde tudo era como ele queria que fosse mas estava impossível. As risadas dela
estavam sendo filtradas em meio aos sons de outras pessoas e chegavam
dolorosamente aos ouvidos do pobre Artista tímido.
Foi assim
durante três semanas. Esse tempo todo a Cineasta nem passava ao lado da mesa do
cada vez mais deprimido Artista e ele se afundava em sua cadeira, buscando um
conforto que, provavelmente, não existia. Choveu na rua e no coração do Artista
durante três semanas e o Senhor Chuva trazia consigo uma aura quase mágica que
não ajudava na recuperação do Artista. Estranhamente, na última semana começou
a chover menos, como se durante as visitas do Senhor Chuva, a própria chuva
fugisse dele a cada entrada e saída pela porta.
Certo dia
nesta última semana, acompanhado de uma fina garoa, daquelas que esfriam seu
rosto com as pequenas gotículas de água fria que se misturam ao vento, o Senhor
Chuva estava sozinho em sua mesa, olhando para a rua lá fora. O Artista pediu
ao Geléia o seu costumeiro café, mas desta vez pediu uma porção de bolinhos de
chuva e, após recebido o pedido, foi se sentar na mesa do Senhor.
- Boa
tarde. – Ele disse já se sentando.
Os olhos
calmos se encontraram aos olhos casados do Artista.
- Olá,
jovem.
- Se
importa se eu sentar?
- Você já
sentou não é mesmo? – respondeu Senhor Chuva com um sorriso maior que o de
costume.
- Eu só
queria saber uma coisa...
- O que
trás uma figura como eu para um café simples como este?
O Artista
levantou uma sobrancelha.
- Quase
isso. Só queria saber o que um homem da sua idade quer com uma garota como
aquela com quem tem falado quase todos os dias.
- A garota
dos óculos escuros?
- É.
Senhor
chuva se reclinou em sua cadeira e olhou para a grande janela, examinando o
quadro movimentado que era a cidade lá fora. Deu um gole em seu café e disse:
- Ela é
legal. – Começou – Sabe, quando você está a tanto tempo quanto eu vivendo sem
contato com pessoas, a primeira que fala com você já causa um alívio quase que
instantâneo. Ela me falou sobre muitas coisas que perdi enquanto estive fora...
O Artista o
olhou apertando os olhos.
- Ok,
mas... O que exatamente você quer com ela?
O Senhor
tomou mais um gole de café.
- Nada. Eu
estou aqui de passagem. Daqui a pouco a chuva vai embora e eu também... Só
preciso coletar os pecados e consciências pesadas que as águas dos céus passam
para limpar.
- Parece um
trabalho solitário.
- É. O
pouco de sentimento que tenho é quando posso ver o resultado de minha coleta...
Mas o coração aquecido por emoções logo é esfriado quando jogo as emoções fora.
O Artista
se sentiu diante de uma presença muito misteriosa e poderosa. Pensou mais uma
vez na Cineasta e o Senhor Chuva logo lhe disse.
- Você me
parece perturbado, amigo.
O Artista
ficou quieto. O homem se levantou, pegou um bolinho e disse:
- Saia lá
fora... Deixe que a água limpe sua alma.
Piscou um
olho para o Artista, mordeu um bolinho e se retirou.
O jovem
ficou no Café por mais um tempo e pensou em tudo que estava acontecendo em sua
vida no momento. Pessoas que vem em vão, coisas que ele parecia estar perdendo,
pessoas que ele queria confiar mas parecia não poder, pessoas que ele achava
conhecer e etc. Todos lhe diziam para sair e ver o mundo como se ele fosse um
tolo que não aproveita os frutos da vida. Lembrou das pessoas que o cercavam
que pareciam não prestar mais atenção nele, mesmo em um conversa entre dois.
Pensou no trabalho e no como era frustrante não se achar tão bom quanto aqueles
que admirava. Lembrou dos amigos que foram embora. Pensou naquela garota que
ele mandou embora quando estavam se dando bem e pensou agora no coração
solitário que estava abrigando. Pensou em tudo e tudo começou a subir para a
sua cabeça. Foi então que, como em um disparo, ele saiu do café para ir até a
chuva forte lá fora. Após abrir a porta seus passos eram acompanhados por
respingos de água e jorros causado pelos passos em pequenas poças. Passando
pela calçada, atravessando a rua e indo em direção a praça ali perto o Artista
ficou ensopado. Chegando na praça, ele parou e jurava que podia sentir cada
gota que caía em seu corpo. Podia ouvir cada melodia feita pelos individuais
pingos. Era tudo música, a melodia da vida. Ele abriu os braços e deixou a água
cair em seu rosto enquanto ele o virava para o céu, fechando os olhos e
pensando em tudo que pensara antes. Apagou.
Acordou
depois de muito tempo dentro do Café do Geléia. Todos o olhavam enquanto ele
acordava com um sorriso bobo no rosto e, quando ele percebeu isso, arregalou os
olhos e se levantou, causando espanto em todos ali presentes.
- O que
aconteceu?
- Eu te
achei desmaiado na praça, cara – A Cineasta falou tocando seu ombro – Cê tá
bem?
Ele estava
ótimo. Parecia que sua alma estava novinha. Ele queria sorrir e o fez sem
vergonha.
- Estou
ótimo, obrigado. – E se levantou.
Semanas
depois, o Senhor Chuva não apareceu. E não parecia que ia voltar. O Artista
estava calmo, mas um certo dia quando estava se preparando para ir embora
estava pensando o que tinha acontecido com o Senhor Chuva. Quando estava
passando pela porta, o Velho o chamou e começou a dizer:
- Ele não
vai voltar tão cedo, sabe?
O Artista
parou e olhou para o Velho, enquanto ainda segurava a porta.
- Ele é
muito ocupado, mas gostou de você. Até deixou uma mensagem.
O Artista
levantou os olhos e disse:
- O que ele
disse?
- Ele disse
para não se preocupar com sua amiga. Que o dono do coração dela está bem diante
dela. Ela só precisa tirar os óculos.
Com um
sorriso, o Artista saiu para encarar o mundo, mas o Velho sussurrou com um
sorriso esperto e para si mesmo.
- Afinal
quem precisa de óculos escuros depois dessa chuva?
"Chegando na praça, ele parou e jurava que podia sentir cada gota que caía em seu corpo." |
3 comentários:
Um banho de chuva pra limpar a alma... Taí o que eu
O gostoso do Café do Geleia é que ele me traz as melhores soluções :)
Genial como sempre, Jovinhaz!
Man, essa sensação é simplesmente muito boa!!!!
Sério, muito loko mesmo!
Tenho certeza que jamais comerei um bolinho de chuva com o mesmo sabor ou tomarei chuva com a mesma irritação de outrora.
Saúde!
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